A QUESTAO EPISTÊMICA - CNPq

Definição do problema

Quem é ou quem são os sujeitos da ciência? Como se constroem os objetos de pesquisa? Métodos são sem gênero? Quais são as formas ideais do fazer científico?

A discussão de gênero e do feminismo vem avançando no espaço acadêmico, porém os limites deste avanço são também reais e que merecem ser examinados mais de perto. Há onde se “avança”, há onde se paralisa, há onde se recua. A metáfora das ondas, então, segue exata para retratar o quadro geral das mulheres na academia.

Já que hoje estamos vivendo a quarta destas ondas, que chega com uma inesperada pluralidade de conteúdos, demandas, contextos e interações, é fundamental sair em busca de seus efeitos na academia. Até que ponto os modelos e discursos acadêmicos anteriores estão sendo reformulados ou interpelados pela emergência dos novos feminismos pro ativos e potencializados pela internet? Sobretudo, quais são as reais condições de questionar o coração duro da ciência?

Números Falantes

Vejamos o que dizem os números. Como tema de pesquisa, a situação dos debates sobre gênero e sobre feminismo no Brasil se encontra de certa forma confortável. Numa pesquisa preliminar feita nos diretórios dos grupos de pesquisa registrados no CNPq, estes temas estão presentes em quase 300 grupos (272, para sermos exatas), sob as denominações mais diversas – são coletivos, grupos de pesquisa, grupos de trabalho, linhas de pesquisa dentro de grupos. Todos os Estados brasileiros possuem pelo menos um grupo pesquisando sobre estes assuntos. Estes grupos se concentram majoritariamente na região Sudeste – o que seria de se esperar - , dada a alta concentração de renda, demográfica, equipamento urbanos, capital financeiro e prestígio desta região – seguido de perto, porém, pela região Nordeste. O Nordeste também é a região com maior número de grupos que interseccionam raça, gênero e diversidade sexual, em estudos que trabalham com a composição étnica da maioria de seus Estados.

As questões abordadas são várias. Vão desde as mais tradicionais, como violência contra a mulher, saúde reprodutiva ou o feminino nas artes; até outros, que refletem preocupações mais recentes, como o Direito à cidade, ciberdança e cibermulher, feminismo materialista e empreendedorismo feminino. É importante observar que estas discussões se dão não apenas nos cursos onde o debate sobre gênero e feminismo se dá ha bastante tempo - como Letras e Ciências Sociais - , mas também em cursos como Turismo, Teologia, Arquitetura e Urbanismo, Geografia, Ciências da Computação. A região que possui menos grupos de estudos de gênero é a região norte.

Um mapeamento sobre a presença da pesquisa sobre gênero em eventos científicos realizados no Brasil mostra sua vitalidade. Um dos pioneiros é o Seminário Internacional Fazendo Gênero, que em 2017 já em sua 11ª edição, completando 18 anos de existência, realizado juntamente com o 13º Congresso Mundial de Mulheres, totalizando cerca de 8.500 pessoas inscritas. Mais recentemente, temos o Seminário Internacional Desfazendo Gênero, que está já em sua 3ª edição; o Colóquio Internacional Homens e Masculinidades, em sua sexta versão; o Simpósio de Gênero e Sexualidade, na edição terceira; e o Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades, que completa 10 anos e está em sua quinta edição. São todos eventos de alcance nacional que reúnem centenas de pesquisadorxs, professores, estudantes nacionais e internacionais.

Neste cenário, temos também uma forte discussão sobre a inserção do gênero no currículo de escolas e universidades. Assim, o III Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), 2013-2015, colocou entre suas estratégias de ação “a criação de Diretrizes Curriculares Nacionais específicas de gênero (na perspectiva interseccional) para todos os níveis, etapas e modalidades de ensino”. Entretanto , no início do governo Michel Temer , o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher passou por uma fase de desmantelamento e desgaste, perdendo, num retrocesso lamentável, seu status de Ministério. Em 2017, o Ministério da Educação enviou a Base Nacional Comum Curricular ao Conselho Nacional de Educação, retirando do documento as menções a gênero e orientação sexual, tornando portanto sua inclusão restrita a iniciativas de professorxs ou em articulações pontuais de alguns cursos dentro das universidades. Mesmo assim, é importante registrar que no início de 2016 o primeiro curso de bacharelado em Gênero e Diversidade foi reconhecido naUniversidade Federal da Bahia.

O cenário dos estudos de gênero na Universidade brasileira ainda é bastante ambíguo. Ainda que o empenho na institucionalização acadêmica destes estudos sejam significativos, o prestígio de “gênero” ainda é visivelmente baixo. Muitas vezes, gênero é considerado uma sub-especialidade dentro de áreas mais amplas, e não uma questão epistemológica que coloca em suspensão a própria idéia de “campos de conhecimento”.

Numericamente, é inegável o crescimento de profissionais, estudantes e técnicas mulheres nos quadros das universidades brasileiras, tendo crescido 73%. nos últimos 10 anos, perfazendo no caso das estudantes mulheres, 55,6% dos 8.033.574 matriculadas, segundo os dados do censo escolar de 2015.

Se o critério racial se somar ao de gênero, tem-se a configuração de um quadro em que as estudantes negras são minoria dentre as alunas; numa escala de cor/sexo, teremos então em primeiro lugar as mulheres brancas, seguidas por homens brancos, vindo a seguir as mulheres negras e por último os homens negros, estruturando um sistema em que representações sobre masculinidades e feminilidades incidem sobre os resultados aqui apresentados.

No entanto, embora as mulheres sejam maioria no corpo estudantil e técnico-administrativo, estejam bem representadas enquanto docentes e pesquisadoras, quando se fala em sinais de prestígio – como cargos de poder - a situação se inverte. Os exemplos são muitos, ficamos apenas com o registro da subpresença de mulheres na chefia máxima das instituições federais de ensino superior: Em 2016, apenas em um terço destas instituições havia uma reitora mulher.

Tentando dar conta destas disparidades, o Programa Mulher e Ciência, lançado pelo governo brasileiro em 2005, reunia um conjunto de ações que incluía o Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero (anual), concurso de artigos sobre a temática, cujo último edital, o de número 11, é de 2016; o Edital Relações de Gênero, Mulheres e Feminismos (trienal; última edição: 2012), para pesquisa nestas áreas; Pensando Gênero e Ciências, promoção de encontro trienal de grupos de pesquisa nacionais deste campo de conhecimento; e Meninas e Jovens Fazendo Ciência e Tecnologia, ação indutiva a fomentar o aumento de mulheres nas carreiras científicas e tecnológicas. Todas estas ações eram coordenadas pela Secretaria de Políticas para as Mulheres.

Escritas, experiências

Depois dos números, algumas perguntas. Basta a presença das mulheres (sem dúvida um direito) na academia para que as coisas mudem? Quais foram e são suas consequências? As respostas são muitas e dependentes de fatores como origem de classe, etnicidade e orientações sexuais, contextuais, entre outras mais sutis. O fato é que a construção das diferentes subjetividades das mulheres que passaram a habitar o espaço das universidades se fez em forte interação – conflituosa e/ou harmoniosa.

O campo acadêmico

Por sua vez, o campo social acadêmico também não é unívoco nem uniforme. Este campo se constrói em salas de aula, laboratórios, departamentos, espaços de convivência, instâncias deliberativas, administrativas, congressos. São estes os lugares sociais em disputa no mundo da Academia.

Pode-se ainda aprofundar a discussão sobre a maternidade, no sentido de se pensar a parentalidade . Sobre como se exerce a paternidade na academia, do status dessa parentalidade no ambiente universitário, marcadamente intelectual, racional e muitas vezes sem a porosidade necessária para um avanço na diversificação de seus modelos na produção do conhecimento. Com a entrada das mulheres indígenas nas universidades, os debates tornam-se ainda mais provocadores como o direito à circulação de crianças em salas de aula, seminários, simpósios, a partir de seu próprio estranhamento com a cultura não-índia, que separa crianças e adultos, cotidiano e práticas profissionais (ou profissionalizantes).

A reflexão sobre mulheres na academia se constitui como uma alavanca para desnaturalizar o ambiente universitário e a complexidade de suas articulações. A perspectiva de gênero é um lugar de estranhamento, de necessidade de se “estranhar o familiar”, no sentido de desnaturalizar, desessencializar o comumente sabido e compartilhado sobre um fenômeno, algo que acompanha xs antropólogxs nas suas atividades de pesquisa em sociedades complexas, trazendo um “por quê?” a tarefas, lugares, pressupostos, discursos.

Estrutura da academia, para incorporar essas discussões. (Gabriela Gaia)

Neste ambiente, a escrita é o meio principal de circulação das idéias. Portanto, escrever e publicar é o que promove e circunscreve as relações de poder na Academia. Além da docência, disputar espaços de publicação, dedicar tempo de trabalho para a redação de relatórios de pesquisa e de artigos são tarefas da profissão universitária. Como em todas as suas atividades profissionais as mulheres na academia têm que enfrentar uma complexa dupla jornada de trabalhos domésticos e cuidados com filhos, numa engenharia de tempo quase impossível de ser bem sucedida. Uma reengenharia parece urgente e decisiva para a produção acadêmica dessas mulheres. Uma política de publicação que contemple mulheres autoras vem sendo, ha bastante tempo, demanda permanente. Ao lado da publicação de autoras mulheres, o incentivo à publicação de pesquisas com perspectivas de gênero e ou feminista vem sendo um esforço recorrente, muitas vezes com obstáculos reais.

“Ainda são poucas as autoras mulheres que entram nas bibliografias dos cursos – intérpretes, intelectuais – poucos os negros.....Poderiamos dizer que isso é uma questão histórica, uma questão de formação, mas poderiamos dizer também que há aí uma espécie de centrismo, de centralidade, de uma voz muito unívoca, muito marcada por uma voz masculina, eminentemente branca que até pouco tempo não permitia a idéia de pluralidade, de multiplicidade, que vai se afirmando neste contexto em que nós vivemos.” (Lilia Schwarcz)

Visibilidade

O caminho mais eficaz para a divulgação e a visibilidade da produção científica sobre as relações de gênero ou feminista tem sido a criação de periódicos especializados. As mais importantes neste sentido são a Revista de Estudos Feministas (UFSC) e a Pagu (Unicamp), ligadas a grupos de pesquisa consolidados nas respectivas universidades. Temos também iniciativas mais recentes, como a Revista Gênero (UFF), a Gênero e Direito (UFPB), a Periodicus – Revista de Estudos Indisciplinares em Gênero e Sexualidades (UFBA), a Revista Latino-Americana de Geografia e Gênero (Universidade Estadual de Ponta Grossa), Coisas do Gênero – Revista de Estudos Feministas em Teologia e Religião (periódico semestral virtual, Faculdades EST, instituição confessional luterana) e a Bagoas – Estudos gays: gêneros e sexualidades (UFRN), apenas para citar algumas. O que une todas estas iniciativas é o foco nas relações de gênero porém os espaços universitários de sua produção, a vinculação ou não a alguma disciplina, o encaminhamento dos conteúdos e programas demonstram a diversidade e o potencial expansivo destas iniciativas.

A internet vem se mostrando um caminho amigável para a difusão da produção de conhecimento das mulheres, ainda que o mito do livro e do artigo impresso não tenha sido relativamente superado. Um exemplo é o “Mulheres também sabem” - https://www.mulherestambemsabem.com/ -, que lista especialistas mulheres no campo das Ciências Humanas; inspirado no americano “Womenalsoknowstuff (womenalsoknowstuff.com/), este site destina-se à divulgação de especialistas atendendo a demandas midiáticas, acadêmicas ou políticas. Já o site “Não tem conversa” - https://www.facebook.com/naotemconversa/ se propõe discutir e expor a ausência da participação de mulheres em situações acadêmicas e não acadêmicas, como mesas redondas, debates, seminários e encontros.

Ainda na mesma direção da entrevista de Tatiana, acima , as autoras do livro Les faiseuses des histories, Vinciene Despret e Isabelle Stengers, entrevistadas no primeiro número da DR, introduzem o desconforto das mulheres no ambiente acadêmico e o horizonte de possibilidades que um enfrentamento discursivo das mulheres nesse ambiente pode promover. O próprio título, faiseuses des histories, que pode ser traduzido como “criadoras de caso”, já denuncia estratégias interessantes para interpelações políticas ou epistemológicas no espaço e na produção acadêmica.

“Se a psicologia se apropriou das emoções, por exemplo, e dos modos de afetar, sentir, de expressar, ela moldou os modos de ser do novo que se expressam nas manifestações e nas revoltas. Os “homens civilizados” se expressam através de uma racionalidade sobre a qual, invariavelmente, todo mundo deveria estar de acordo, pois todo mundo é racionalizado. (...) Nas revistas pretensamente emancipadoras femininas, ainda há “as mulheres são mais sensíveis”, “as mulheres pensam mais em um discurso afetivo”, o que é muito perigoso de dizer, pois se se faz disso uma psicologia, torna-se uma maneira de desvalorizar e de razão aos que detêm a racionalidade. Então, como tornar um discurso afetivo para fazer dele um discurso? Não um discurso afetivo, um discurso sobre a afetividade, sobre o corpo, sobre os modos de fazer, de maneira que isso se torne um modo político de engajamento? A respeito do riso, estou pensando que faz anos que trabalho em uma universidade e não me sinto no meu lugar, sou impostora e serei descoberta! Vão me pegar! (...) É aí que o riso é extremamente saudável, pois não temos mais medo de fazer rir. ...no lugar de ser vítima desse terror de ser uma impostora, (...) a gente se produz como alguém que cria o humor na situação (...) fazer rir é uma alegria, pois é um riso de confiança. Os homens tem medo de fazer rir porque o riso é associado ao ridículo. (...) Mas no nosso caso cria-se uma cumplicidade com aquela de quem se ri, e ela pode rir junto.” (Vinciene Despret, in Revista DR, edição 1)

Mulheres na academia: mudando o foco nas ciências

Neste ambiente assim desenhado, não estamos mais falando apenas de quantitativos de mulheres que atualmente fazem parte – ou ainda não fazem parte – do panorama geral do corpo discente ou docente das universidades, das chefias, das bolsas de produtividade ou de pesquisas no exterior. Também não se está falando somente de temas ligados à reivindicação de maior visibilidade das contribuições das mulheres através da história. Trata-se agora de uma avaliação de impacto das pesquisas e análises a partir da perspectiva de gênero. Uma avaliação qualitativa sobre a perspectiva de mudanças paradigmáticas a partir do pensamento das mulheres no campo científico. A possibilidade da reflexão crítica sobre formas de saber, métodos, objetos, objetivos, conteúdos, interações existentes neste campo, e propor novos olhares e inquietações.

Voltando à Joan Scott (2001), vemos sua valorização da experiência como um fator que coloca em relevo contextos, conflitos e dinâmicas que não seriam vistos de outra maneira a não ser atraves deste ponto de vista. . Impressões, experiências e observações geram mais dúvidas e inquietações do que as verdades, insinuam mais do que afirmam, projetam e inquietam

A interpelação inteseccional

A interseccionalidade vem se constituindo como uma outra forma de interpelar ao mesmo tempo as hierarquias de opressão presentes nas existências das mulheres, apontando para as variedades de estruturas que invisibilizam e apagam suas múltiplas demandas. Valorizada como perspectiva a partir do esforço de autoras negras como a lésbica, negra, militante Audre Lord e Kimberlé Crenshaw, entre diversas outras, se abre para a busca de novas teorias que possam dar conta de suas específicidades e cruzamentos. Neste quadro, a valorização das teorias decoloniais se faz importante. A perspectiva decolonial , além de contemplar as questões colocadas pelos feminismos interseccionais também oferecem uma importante chave diferencial para o feminismo branco não-europeu, não-norte-americano.

“Acredito que o feminismo inteseccional supera o feminismo tradicional porque é uma nova síntese por incorporação, algo que questiona não apenas o poder masculino, como o feminismo tradicional, mas também questiona o poder e outras formas de opressões. É um contra-discurso.” (Carolina Pinho)

Esta é a urgência maior da academia feminista. Mais do que os níndices quantitativos em alta da participação feminina nas Universidades, o impacto esperado vem da força qualitativa de uma comunidade acadêmica que começa a contemplar a participação mais diversificada em termos de raça, de etnias e de gênero. Repito a indagação de Grada Kilomba : “O que acontece quando falamos?”

Novos tempos, novas teorias

A interpelação das hierarquias (ou ecologias) dos saberes, métodos e discursos de autoridade não é uma proposta exclusiva da abordagem feminista. Quem leu Foucault, Derrida & outros, sabe que não é privilégio das mulheres a defesa de uma análise profunda e inadiável, das instâncias de autoridade que constituem certos discursos acadêmicos e sociais. Coincidentemente, essa é proposta principal do feminismo na academia, só que utilizando ferramentas próprias.

A filósofa trans Helena Vieira vem marcando uma posição de vanguarda na pesquisa em torno da criação de ferramentas que interpelem a autoridade epistemológica eurocêntrica e heteronormativa gerando um ambiente hermenêutico mais inclusivo.

Um dos trabalhos feministas nesta área mais citados é o Miranda Fricker que traz o conceito de Injustiça Epistêmica . Injustiça epistêmica para Miranda é a forma como nossas práticas epistêmicas podem ser limitadas por estruturas de poder que se manifestam socialmente.

Outros caminhos de pensamento importantes que dialogam com a ideia do lugar de fala sobretudo na produção acadêmica , presentes no trabalho de Helena Vieira, é a pesquisa em torno das noções de " Infiltração pragmática" (pragmatic encroachment) e Ponto de vista epistemológico” (standpoint epistemology". A primeira defende que a atribuição de conhecimento tem seu valor de verdade dependente de seu contexto conversacional. A segunda propõe a experiência como ponto de partida epistemológico baseada no entendimento marxista de experiência, agora como interpelação às teorias patriarcais e às epistemologias convencionais dominantes. Donna Haraway , que abraça essa tendência, procura defender a noção de “ponto de vista epistemológico” enquanto a de um “conhecimento situado”, em oposição a um relativismo aparente deste mesmo ponto de vista. Entrando na área científica, Sandra Harding insiste na sugestão metodológica da utilização da experiência das mulheres enquanto categoria de análise, uma outra forma de mobilizar o capital e o potencial interpretativo da experiência pessoal, majoritariamente banida da produção de conhecimento vista como “legítima”.

Por outro lado, é perceptível , nas novas gerações de teóricas do feminismo, uma certa distância dos discursos pós-estruturalistas que foram tão importantes para as teorias feministas dos anos 1980 em diante. Hoje parece haver e uma procura mais insistente na construção e modelagem de formas de produção de conhecimento mais locais, mais específicos, menos eurocêntricos, mais cruzadas e mais diretamente alimentadas pelas propostas do pensamento interseccional.

“Nós tanto sabemos da existência do que você chama de “feminismo clássico dos anos 60” quanto, para o bem e para mal, temos que lidar com o que ele estabeleceu como prioridades. Pensando no caso brasileiro, os embates vividos entre mulheres negras e mulheres brancas dentro dos encontros feministas nas décadas de 1970 e 1980 dão uma boa mostra do quanto as expectativas por emancipação econômica e sexual foram vividas de maneiras diferentes e não necessariamente se desdobravam de modo natural em equidade para todas.

Se esse feminismo branco americano e europeu dos anos 60 foi incorporado sem grandes hesitações pelo feminismo latino americano, hoje, vemos um forte movimento das novas gerações de acadêmicas em direção ao questionamento desse modelo conhecido como o “giro decolonial” , termo cunhado pelo filosofo porto-riquenho Nelson Mandonado-Torres.

Os estudos pós-coloniais, emergem nas décadas de 1970 e e 1980, mas, ainda que tivessem como foco a construção do colonizado, o faziam com base no discurso do colonizador. Já o giro decolonial, traz a prioridade da pauta de descolonizar a epistemologia latino-americana e os seus cânones, em sua maior parte, de origem ocidental, formulando novas Epistemologias do Sul, necessariamente pluriversais. O pensamento decolonial propõe ainda um novo paradigma que leva em consideração não apenas a geopolítica mais também a corpo-política, isto é, a situacionalidade geohistórica e corporalizada que articula a produção de conhecimento.

Para Walter Mignolo, um de seus principais formuladores, “o continente latino-americano é uma localização geohistórica central na produção de conhecimentos mundiais do ponto de vista do “pensamento liminar” ou “fronteiriço”), que não existe independentemente da modernidade, mas em resposta a ela, como parte das lutas concretas contra todos os tipos de silenciamento das diferenças. Estas, uma vez escutadas, tenderiam, enfim, a abrir um novo horizonte cognitivo, como atitude descolonizadora perante a ciência e seus cânones que forjaram a Razão (pseudo) universal. “(MIGNOLO, Walter. Histórias locais. Projetos globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2013., p 419)

Hoje, cada vez mais, o giro decolonial apresenta-se como um caminho teórico interessante para os novos feminismos intersecionais e anti eurocêntricos. Algumas teóricas são referências neste sentido. Já é classico o trabalho de Maria Lugones, filósofa e feminista argentina, sobretudo com o texto “Colonialidad y género” , de 2008, parte do conceito de colonialidade do poder para propor uma leitura radicalmente decolonial feminista que questiona a construção colonial moderna de gênero e sexualidade. Para isto, recorre às autoras Oyéronké Oyewùmi y Paula Gunn Allen, que mostram como a divisão da humanidade em gêneros femininos e masculinos - e as consequentes formas de opressão de um pelo outro - , só ocorreu nas sociedades indígenas e africanas a partir dos processos imperialistas de colonização. A partir daí, Lugones mostra como o processo de colonização promove o enraizamento da concepção ocidental de gênero, e questiona a homogeneização da denominação de “mulher”, procurando demostrar a mútua relação entre gênero e colonialidade. Em “Rumo a um feminismo decolonial” , Maria Lugones propõe a crítica ao universalismo feminista a partir da intereseccionalidade e baseada numa interesubjetividade fortemente historicizada.

As contribuições do feminismo decolonial ainda se desdobrarão em grandes surpresas no campo epistemológico. Talvez a inspiração mais radical e fascinante que experimentamos hoje seja o trabalho de Gloria Anzaldua, (1942 –2004) que faz da propria experiência autobiográfica , uma proposta textual. Anzaldua lecionou na San Francisco State Universit, University of California Santa Cruz e na Florida Atlantic University. Anzaldua foi co-organizadora , com Cherrie Moraga, da já histórica e pioneira antologia sobre o feminismo interseccional, This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color. Em 1987, lança Borderlands/La Frontera: The New Mestiza, um texto performance onde mistura poesia, autobiografia, ficção, teoria, usando várias linguas simultaneamente como o inglês, o espanhol e dialetos indígenas. A escrita de Anzaldua reflete, na construção de seu proprio texto, as exclusões e os desequilíbrios históricos a que se refere. O texto de Anzaldua atua no nervo exposto dos discursos da diferença e propõe recursos epistemológicos intersubjetivos que permitam a expressão nômade das relações entre centro e periferia, tradição e modernidade. Outra investida de Anzaldua no campo discursivo foi a de recuperar e recodificar as muitas formas de nomeação da Mulher, assumindo posições resistentes de sujeitos como nas figuras da Mulher-Cobra [Snake Woman], La Chingada, Tlazolteotl, Coatlicue, Guadalupe, La Llorona e outras. É classico o seu discurso “Falando em linguas: uma carta para as muheres do terceiro mundo” (Speaking in Tongues: a Letter to Third Women Writers”)( Keating (ed.), The Gloria Anzaldúa Reader (2009), pp. 26-36.) sobre o poder da reeinvenção da escrita para a criação de um novo mundo.

Talvez não seja exageradamente utópico prever que nossas jovens acadêmicas, que surfam nessa quarta e surpreendente onda do feminismo, tomem a si a tarefa de assumir um merecido protagonismo acadêmico e contrapropor novas e necessárias epistemologias e formatos de expressão e produção de conhecimento. Já podem ser vistos alguns movimentos no campo das artes e da performance, áreas acadêmicas tradicionalmente mais flexíveis em relação à autoexpressão político-estética com valor argumentativo e analítico.

O PROJETO

A criação do projeto Fórum Mulher UFRJ foi pensada a partir deste estudo e diagnóstico das questões de gênero no campo acadêmico .

O PACC

O Fórum Mulher UFRJ é um projeto do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) uma linha de pesquisa do Departamento de Ciência da Literatura , Faculdade de Letras, UFRJ. O PACC, criado em 1994, é um programa de pesquisa pós-doutoral em Estudos Culturais. As pesquisas do PACC, geraram até agora dois grandes Laboratórios, ambos com auxilio do CNPq.

O primeiro é um laboratório de tecnologias sociais , a Universidade das Quebradas, que desde 2009 já recebeu mais 500 artistas, poetas e escritores das periferias do Rio de Janeiro. A Universidade das Quebradas recebeu os prêmios “FAPERJ 30 anos” e “Faz a Diferença” do jornal O Globo (mais informações www.unioversidadedas quebradas.pacc.ufrj.br )

O segundo, criado há quatro anos, é o Laboratório da Palavra que oferece pesquisa, seminários palestras e oficinas contemplando todo o ecossistema do livro ou seja, do autor ao leitor passando por criação, revisão (e os demais processos da produção editorial impressa e digital) tradução, crítica, recepção, bibliotecas, livrarias, e-commerce . O Lab da Palavra causou grande impacto na comunidade discente da faculdade de Letras e a Direção está considerando sua transformação em Bacharelado.

O Laboratório Mulheres UFRJ

É inadiável que a Universidade pense as relações de gênero em seus espaços docentes e discentes e, sobretudo, no papel da experiência social da mulher como constituinte dass perspectivas epistemológicas, científicas, e metodológicas.

Este projeto, poortanto, pretende pesquisar e estimular o debate que interpelem a autoridade epistemológica eurocêntrica e heteronormativa gerando um ambiente hermenêutico mais inclusivo. Alguns estudos nessa direção surgem trazendo noções interessantes como o conceito de Injustiça Epistêmica (Miranda Fricker ), "Infiltração pragmática" e “ponto de vista epistemológico” ou saber situado (Donna Harraway.

Em todos, torna-se central a interpelação da chamada objetividade científica como valor acadêmico. (Stenger chama a isso de o bom academicismo” aquele que é aprovado e normatizado nos trabalhos científicos e acadêmicos, sem reconhecer a função da experiência no universo epistemológico. Ao contrário, ainda segundo Stenger, na academia e mesmo nas artes, a dicção feminina é, invariavelmente pscologizada, negando a sugestão de Deleuze ao insistir na idéia de que os conceitos são contextuais e só assim podem ser avaliados. Donna Haraway , neste caminho, , procura defender a noção de “ponto de vista epistemológico” enquanto a de um “conhecimento situado”, em oposição a um relativismo aparente deste mesmo ponto de vista. Entrando na área científica, Sandra Harding insiste na sugestão metodológica da utilização da experiência das mulheres enquanto categoria de análise, uma outra forma desmobilizar o capital e o potencial interpretativo da experiência pessoal, majoritariamente banida da produção de conhecimento vista como “legítima”.

Este debate vem constituindo um novo campo de estudos conhecido como Epistemologia Social. É nesse campo, que as pesquisas, cursos e atividades do Lab M- UFRJ se situa.

Referências bibliográficas

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